terça-feira, 26 de maio de 2015

A carta

Ele parou em frente de sua casa e buzinou uma, duas, três vezes, mas ninguém apareceu para abrir o portão. Colocou o carro em ponto morto, tirou o cinto e desceu embaixo de chuva para realizar a tarefa que geralmente seus filhos disputavam para empenhar. Guardou o carro e entrou na casa pela porta da garagem, pisou na sala e logo sentiu um aroma de treta no ar.
Sentada no sofá estava sua mulher com os seus dois filhos, um de cada lado, ambos com cara de velório. Só não pensou que alguém havia morrido por que viu no centro do cômodo as malas.
– Estamos de viajem? Falou. Todos, inclusive o querido Rex, seu cachorro de estimação, que sempre foi tão cardeal, lhe olhavam com uma cara de repudio.
– Nós não, disse a mulher. Mas você vai, e nos faça o favor de viajar pra longe daqui, longe de nossas vidas. Pelo tom de voz de sua companheira ele percebeu que a coisa era séria.
– Alguém aqui pode me explicar o que diabos está acontecendo? Os dois garotos olharam para o pai, levantaram-se e foram chorando em direção ao quarto, ele teve a sensação de que o cachorro deu uma rosnada em sua direção antes de seguir os meninos.
– Então você quer saber o que aconteceu sr. Antônio Marcos da Fonseca? Eu vou lhe dizer o que aconteceu seu – pensou num palavrão a altura – seu filho de chocadeira. Foi o pior que pode achar no seu culto vocabulário. Saia espumas dos cantos do lábio da mulher, que meteu a mão no bolso do avental e tirou de lá um envelope vermelho aveludado.
– Como pôde? Dizia ela. Você por acaso pensou em mim ou nos meninos? Eles tinham você como herói. Ele pegou o envelope e antes que pudesse ver do que se tratava, sua cônjuge atirou-se pra cima e, com toda a magoa que uma mulher pode sentir, sentou-lhe a mão na cara com toda a sua força feminina, o que se pareceu mais com um caminhão acertando o seu rosto, ele tonteou. Nesse meio tempo ela já estava colocando as malas do homem no carro. “Suma daqui!” esbravejava, “não precisamos de alguém como você em nossas vidas, desapareça!”.
Antonio Marcos nem pensou duas vezes, o medo de levar outro tabefe nas ventas fez que como num passe de mágica, ligasse o carro e acelerasse, então lembrou que havia cadeado o portão. Quando desceu para abrir o dito cujo sentiu um peso na perna direita, era o Rex, o mascote da casa, abocanhando o seu calcanhar. Livrou-se das presas de seu antigo melhor amigo, entrou no carro e acelerou sem pensar em que direção seguir.
Depois de alguns giros sem rumo decidiu parar para refrescar a cabeça e refletir sobre o que estava acontecendo. Parou com o carro embaixo de um poste de luz, ligou o alerta, meteu a mão no bolso do paletó e tirou de lá o envelope vermelho. Colocou o papel embaixo da luz fraca da rua, quando um flash vermelho e azul começou iluminar.
– O senhor precisa de ajuda? Perguntou o policial, olhando as malas dentro do carro. Está indo viajar? Nessa altura o homem da lei já coçava o bigode. – Fui expulso aos tabefes de minha própria casa, tudo começou por causa dessa carta seu guarda, tentei ler mas esta escrita no antigo dialeto desta cidade, não consigo entender, disse o homem. O guarda pegou o papel, começou a ler, e quando terminou instantaneamente mudou o semblante.
– O senhor poderia sai do carro e me acompanhar até a viatura, por favor? Antonio Marcos não estava acreditando no que estava acontecendo, só podia ser uma piada de mau gosto.
Na delegacia o policial entregou a carta ao delegado e levou o rapaz para uma pequena sala de espera. Ficou ali por quase meio dia, até que apareceu um sujeito franzino vestido com uniforme de agente e disse para o preso que se arrumasse o mais rápido possível, por que ali na era lugar para pessoas como ele. Em todos os lugares por onde passou naquela semana, após verem a carta, as pessoas cordialmente lhe expulsavam. Na delegacia, no tribunal, na suprema corte, nos bares, nos banheiros públicos. Enfim, ninguém chegou a maltratar o cara, mas quando olhavam a carta as pessoas se afastavam, não de forma histérica igual sua esposa, mas com um certo desgosto pelo seja lá o que ele tinha feito.
Sem saber o que estava escrito, ele resolveu não mostrar mais a carta pra ninguém, afinal por causa daquele papel ficou proibido de comprar passagens de ônibus e avião por que havia mostrado para os atendentes nos guichês, que respeitosamente pediram que fosse embora.
O mar era sua ultima alternativa se quisesse sair daquela cidade, e foi o que fez, comprou a passagem em uma companhia marítima e ficou uma tarde esperando no cais. Em alto mar, resolveu ficar quieto e não dar muita bandeira da sua presença, aquela carta tinha feito dele uma subcelebridade às avessas em terra e poderia ser perigos se o mesmo acontecesse naquele navio dentro daquela imensidão azul.
Lá pelo terceiro dia de viajem, ele percebeu que um dos marujo cantarolava uma musica em um idioma que ele parecia reconhecer, era o mesmo dialeto que estava escrito na carta. Ele esperou por uma a oportunidade, chamou o sujeito e disse que pagaria o valor que fosse preciso se ele traduzisse o que estava escrito naquele maldito papel e o dobro se o cara não tivesse uma crise de histeria. O marujo que era um homem do mar, e por tanto era um sujeito que honrava sua palavra, aceitou o acordo. Com o valor que pedira pela tradução poderia passar uma semana dentro de um cabaré, tendo o atendimento digno de um marinheiro. Marcaram de se encontrar às oito da noite no deck do navio, escolheram essa hora porque havia poucas pessoas fora dos alojamentos.
Um vento leve batia no rosto de Antonio Marcos enquanto ele olhava o mar esperando seu amigo poliglota aparecer. Ele estava mais curioso do que com medo de saber o que estava escrito naquele papel que desde que apareceu só ferrou com a sua vida. Com meia hora de atraso apareceu o marinheiro, meio cambaleando com uma garrafa de conhaque de baixo do braço, o sujeito estava meio afobado e tendo precipitações por causa da bebida.
– Deixe-me ler esta porcaria pra você me pagar de vez, não tenho a noite toda. Falou o homem. Antonio marcos tirou a carta do bolso e entregou pro cara. Quando este a tirou do envelope com suas mão trêmulas pelo álcool, não precisou de  um vento forte para fazer aquele papel voar para algum lugar longe da nossa curiosidade.

João Mota (cafecommota.wordpress.com)

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